Existem duas perguntas difíceis de serem respondidas que aparecem em nossa cabeça em momentos de ócio ou de frustração: “Por que é tão difícil ser feliz?” “Qual é o significado da vida?”
O professor Mihaly Csikszentmihalyi resolveu unir ambas as perguntas para desenvolver a sua teoria de flow (fluxo).
Mihaly passou a se interessar em descobrir quais eram os elementos que contribuíam para trazer uma vida que valesse a pena ser vivida, explorando arte, religião, filosofia e vários outros campos do conhecimento que poderiam ajudar nessa investigação. Ele finalmente achou que a psicologia poderia ser a ferramenta ideal para responder a sua pergunta.
Riqueza não traz felicidade
Mihaly compartilhou um slide de um gráfico de pesquisa feita com a população americana sobre o seu nível de felicidade. O que é interessante na imagem abaixo é que a tendência de pessoas que se declaram “muito felizes” tende a permanecer na faixa de 30%, independentemente do crescimento econômico e renda per capita.
Gráfico: com o crescimento econômico e maior renda per capita, o grau de felicidade das pessoas entrevistadas permaneceu o mesmo, na faixa de 30%.
Se por um lado é verdade que a falta de recursos básicos prejudica um nível mínimo de felicidade, seu aumento não produz maior felicidade.
Assim, a pesquisa de Mihaly foi em descobrir os elementos que correspondem à felicidade em nosso dia a dia.
A dificuldade em encontrar felicidade
Se o progresso econômico não é o elemento que proporciona a felicidade plena, onde estaria o segredo?
O que faz as pessoas sentirem que vale a pena passar a vida fazendo coisas que não trarão fama ou fortuna? Essa foi a pergunta que Mihaly apresentou a diferentes artistas e cientistas, através de uma interessante metodologia. Ele enviava torpedos para os pagers de voluntários em momentos aleatórios ao longo do dia, e, assim que recebiam a mensagem, os participantes deveriam preencher um formulário descrevendo o que estavam fazendo e como se sentiam.
A partir dos resultados dessa pesquisa, Mihaly e sua equipe descobriram um grupo de “atividades ótimas” ou estado de “flow”.
O que é o estado de flow
Um dos participantes da pesquisa respondeu com um exemplo de Flow na área de música: “Você fica em um estado de êxtase de tal modo que sente que nem sequer existe mais. Eu vivi isso várias vezes. Minha mão parece mover independente de meu corpo, e eu não tenho a menor interferência no processo. Eu apenas fico lá, assistindo em fascínio. E a música apenas flui.”
Esse estado mental que nos dá a impressão de não estarmos mais na nossa realidade mundana é ideal. Quando pensamos em grandes civilizações como os chineses, hindus, maias ou egípcios, o que sabemos é sobre seu êxtase, mas não sobre sua vida do dia a dia. Sabemos sobre seus circos, teatros, arenas, pirâmides… esses são os locais onde as pessoas iam para experimentar um tipo de vida além do ordinário.
No caso do músico citado acima, ele não precisava de uma arena física, mas ele tinha a sua arena mental. Ele não precisava se locomover, bastava um papel onde poderia compor e imaginar sons que não haviam até então sido combinados naquela forma especial.
Nosso sistema nervoso não pode processar mais do que uma certa quantidade de dados por segundo. Quando estamos realmente envolvidos em um processo completamente engajado de flow, ele não tem muita capacidade de monitorar como seu corpo está se sentindo, se está com fome, cansado ou mesmo pensar em seus problemas mundanos de casa e burocracias. Assim, a existência é suspensa temporariamente.
Ele também relata que parece que a mão está se movendo sozinha. No caso, esse processo automático e espontâneo somente surge quando o profissional é muito bem treinado e talentoso. É dito que são necessários 10 anos para alcançar um ponto de excelência, como bem descrito no livro Fora de Série de Malcolm Gladwell.
No campo da poesia, Mihaly traz uma nova citação: “É como abrir uma porta que estava flutuando no meio do nada e a única coisa que você precisa fazer é abrir e se permitir mergulhar no que existe adiante. Você não pode se forçar a passar por ela. Você simplesmente precisa flutuar. Se existe algum tipo de força gravitacional, é do mundo de fora que tenta manter você do lado de fora”.
É também um processo espontâneo e sem esforço consciente. Uma descrição parecida como quando Einstein descreveu o processo de entender e descobrir o processo de relatividade.
Na área de patinação no gelo, uma outra citação é apresentada: “Foi simplesmente um desses programas que ‘clicou’. Quer dizer, tudo estava perfeito, tudo era bom. É uma adrenalina, como se você pudesse tocar adiante como se nunca quisesse parar pois está mandando muito bem. É praticamente como se não precisasse pensar, é como se tudo estivesse indo de forma automática sem pensar. É como se estivesse num piloto automático, você não tem pensamentos. Você ouve a música mas não está consciente de ouvi-la, pois faz parte de tudo isso que está acontecendo”.
Isso também acontece no mundo dos executivos de alto sucesso e muito éticos. Essas são pessoas que definem o sucesso como algo que ajuda aos demais. Norman Augustine, antigo diretor presidente da Lockheed Martin, diz que “Eu sempre quis ser um homem de sucesso. Minha definição de ter sucesso é contribuir com algo para o mundo… e ser feliz fazendo isso… Você tem que gostar do que está fazendo. Você nunca será bom se não gostar do que faz. E em segundo lugar, você tem que sentir que está contribuindo para algo que vale a pena… Se qualquer desses ingredientes estiver faltando, provavelmente tem falta de significado em seu trabalho.”
Continuando com citações do mundo corporativo, Anita Roddick, fundadora da The Body Shop recomenda: “Procure pela sua paixão. O que te deixa excitado? O que te dá tesão? Procure empresas que você realmente gosta, realmente admira. O que é que você admira sobre elas? Se puder, faça um programa de estágio lá, ou bata na porta e pergunte se você pode trabalhar lá sem exigir um salário alto. Se puder, encontre organizações que mexem com seu espírito. Trabalhe ao lado deles. E divirta-se. Tem tanta coisa boa para aproveita. Quando você passa 95% da sua vida num ambiente de trabalho, não pode ser duro.”
E Masaru Ibuka, que estava na época começando a Sony, diz “para estabelecer um ambiente de trabalho onde os engenheiros sentem o prazer da inovação técnica, tenha consciência da missão deles com a sociedade, e trabalhe para tocar seus corações.”
Como o estado de flow é atingido
Nas pesquisas de Mihaly entrevistando alpinistas, monges, pastores e uma variedade enorme de pessoas com diferentes níveis de educação e cultura, existem elementos comuns que indicam o que é estar no estado de flow:
- Completamente envolvido no que se está fazendo: com foco e concentração
- Um sentimento de êxtase, de estar fora da realidade do dia a dia
- Uma maior claridade interna, sabendo o que deve ser feito e quão bem estamos fazendo o que deve ser feito. Temos feedback imediato
- Saber que a atividade é possível, que nossas habilidades são adequadas para a tarefa
- Um sentimento de serenidade, sem preocupações e um sentimento de estar crescendo além dos limites do ego
- Uma idéia de estar além da dimensão temporal, totalmente focado no momento presente. As horas parecem passar como se fossem minutos
- Motivação intrínseca, seja qual for o elemento que produz o flow é a nossa própria recompensa
Nos estudos de Mihaly, ele pode medir como as pessoas estão se sentindo a cada 10 minutos através de ferramentas de pesquisa. E o que ele descobriu pode ser representado no seguinte gráfico:
Em geral estamos no ponto do meio. Cada pessoa encontra o flow quando está fazendo aquilo que realmente gosta. Quando temos controle temos um bom domínio do que estamos fazendo, mas não nos sentimos muito desafiados. A apatia é o ponto mais negativo de todos.
Vídeo: palestra de Mihaly Csikszentmihalyi no TED Talks. Existe a opção de ativar legendas em português.
Hedonismo traz felicidade?
Mas e com relação a assistir televisão, uso de entorpecentes e dormir? Não são atividades que geram prazer?
Apesar destas atividades serem prazerosas, elas envolvem pouca determinação e força de vontade consciente. Assim, não promovem nosso crescimento. O desafio é muito baixo e portanto essas atividades de puro prazer que exigem pouca habilidade nos levam ao relaxamento, tédio ou, pior: apatia.
A busca por ordem e por significado
A pesquisa de Mihaly, documentada em detalhes no livro A Descoberta do Fluxo (link afiliado Submarino) indica que se meramente formos passivos, nossas chances de alcançar a felicidade são baixas. É como se o ser humano não fosse naturalmente construído para encontrar felicidade como estado padrão.
Mihaly propõe pensarmos no universo em termos de ordem e caos (ou entropia/desordem). Em sua teoria, humanos acham que a organização é prazerosa por si só. Esta constatação é peça fundamental da teoria de flow: a satisfação humana está no processo de trazer ordem e controle para nossas vidas.
Freud e o estado de flow
O trabalho de Mihaly tem muita influência de Carl Jung e de Sigmund Freud. No caso de Freud, a idéia do “id” é a representação dos desejos animais e instintivos do corpo, enquanto o “superego” representa o mundo externo que modela nossa própria imagem.
É o ego que representa a consciência que possui autonomia apesar de nossos instintos e dos mecanismos de controle da sociedade.
Assim como diz Clóvis de Barros Filho ao palestrar sobre a “boa vida a ser vivida”, Mihaly aponta para a autodeterminação como o caminho para que a consciência seja livre e feliz. Uma pessoa que faz aquilo que entende ser o correto vai adquirindo experiência e, com isso, mais habilidades.
Esse é o ponto interessante da pesquisa de Mihaly: a cada momento que superamos nossos desafios, evoluimos e adquirimos maior complexidade, ficando prontos para desafios maiores. É uma espiral virtuosa. Continuando esse processo, estamos na rota de tornarmos indivíduos extraordinários.
Assim, as oportunidades que permitem atingir o flow são viciantes: sem elas, a vida seria chata, sem sentido ou cheia de ansiedade.
Para Mihaly, a felicidade pode ser aumentada ao fazermos aquilo que amamos.
Qual o sentido da vida?
Ao invés de buscar uma explicação esotérica para nossa existência, Mihaly propõe uma explicação subjetiva, pessoal: o significado da vida é qualquer coisa que seja significante para mim.
Se eu amo fazer esculturas com palitinhos de dente, então esse é o meu barato. É o que dá signficado para a minha vida. Você pode achar perda de tempo, mas é o que preenche a minha vida de significado e eu não tenho como explicar o motivo, apenas sei que é algo que me traz prazer e posso passar horas e horas fazendo isso sem perceber o tempo passar. O que caracteriza essa escolha é 1) um senso de propósito e 2) auto-conhecimento.
Sobre o propósito, recomendo fortemente a leitura de Em Busca de Sentido: Um psicólogo no campo de concentração (link afiliado Submarino) de Viktor Frankl, judeu que sobreviveu a um campo de concentração. Mesmo em uma das piores situações que se pode imaginar um ser humano, ele encontrava felicidade em sua vida, através do propósito: imaginava como seria dar aulas em faculdade relatando as experiências psicológicas do campo de concentração.
Nesse caso, o propósito geralmente é algo que transcende nosso interesse imediato. O próprio flow nos deixa mais conscientes de nossa existência e como nos relacionamos com o mundo. Mihaly se aproxima de outros pensadores otimistas que imagina uma sociedade em que a população está altamente engajada e apaixonada por aquilo que faz.
A cultura da era industrial tinha uma clara distinção entre o que era trabalho e o que era prazer. Hoje, cada vez mais é possível examinar o trabalho realizado por um profissional e nos indagarmos se é algo que induz flow ou não.
Como é o seu relacionamento com o trabalho que realiza hoje? Existem formas de promover um redesign na forma como se engaja no trabalho ou acredita ser necessário mudar completamente?